Depois do pôr do sol

 Depois do pôr do sol



  • Não! O meu pai não! Não podes ir assim pai! Eu ainda preciso muito de ti. Por favor acorda, por favor não me deixes, por favor não vás, eu imploro-te… 

Gabriel sentiu o seu coração despedaçado, em cacos, a sangrar. No momento em que o seu pai morreu, parte da sua alma morreu com ele. Era uma dor profunda, que não conseguia pôr em palavras. A mãe abraçava-o, também ela em sofrimento, sem conseguir controlar o choro que a consumia rapidamente. 

O funeral terminou, mas ele não conseguia sair dali. Tinha conseguido conter o choro, soluçando de vez em quando, dormente, apático, sem conseguir sentir nada. Ele achava algo agradável não sentir achando que tudo não passava de um terrível pesadelo de que estava ansioso que terminasse, no entanto, ao olhar para a sua mãe nos olhos, deixando de ver o brilho que costumava ter no olhar percebeu que era real. O seu pai tinha desaparecido para sempre, deixando, mais do que saudade, memórias e lembranças que ficaram por criar. 

  • Anda Gabriel. Temos de ir para casa. 

  • Eu sei mãe mas o meu corpo não me responde, não consigo levantar-me… 

  • Olha para mim meu filho. 

Ele não conseguia tirar os olhos do buraco onde tinham posto o seu pai. O seu corpo não se queria mexer e ele não tinha forças para o obrigar. Tinha a noção de que os presentes lhe diziam palavras de conforto, lamentando a sua perda, dizendo que toda a situação era muito triste por ele ser tão novo. As pessoas falavam, mas ele não as ouvia. Não queria ouvi-las. A única coisa que queria era acordar daquele pesadelo. O mundo dele tinha acabado de ser despedaçado de uma forma irremediável, perdendo parte da sua identidade por isso, naquele momento, apenas queria estar sozinho. 

Felizmente que depressa as pessoas se foram embora deixando-o sozinho com o seu sofrimento. 

  • Filho! Olha para mim. 

Foi abanado de uma forma bastante violenta e, nesse instante, conseguiu recuperar o suficiente apenas para levantar a cabeça e olhar inexpressivamente para os olhos da sua mãe. 

  • O pai vai estar sempre contigo meu querido, no teu coração. Sempre que te lembrares dele, sempre que olhares para uma foto dele, sempre que falares com alguém sobre ele, juro-te, que nesse mesmo momento, ele vai estar como sempre esteve, ao teu lado. Eu sei que com treze anos isto é muito duro, mas a vida é assim e um dia vamos estar com ele, tenho a certeza disso. 

  • Achas mesmo? 

  • Acho. Vamos para casa, sim? 

  • Está bem… 

A mãe esticou-lhe a mão e ele agarrou-a para se levantar do chão. 

Olhou uma última vez para a campa e prometeu a si mesmo visitá-lo muitas vezes para lhe contar como é que tinha corrido o seu dia como tantas vezes tinha feito. 

A casa era um pouco longe do cemitério, mas decidiram ir a pé, de mão dada enquanto respiravam o ar puro numa tentativa vã de acalmar aquele negro sentimento. 

Estava uma bonita tarde de Agosto já se percebendo a iminente chegada do final do dia. Gabriel olhou para o céu, com os olhares marejados de lágrimas desejando ter conseguido ter-se despedido do seu pai no seu último dia no hospital. 

  • Mãe? 

  • Sim querido?

  • Porque é que o cancro teve de levar o pai? 

  • Porque era assim que tinha de ser. Não vamos perder tempo a tentar encontrar um culpado. Aconteceu o que tinha de acontecer.  

  • A vida é mesmo injusta. 

  • Pois é meu querido… pois é… 

As lágrimas que ele estava a tentar conter caíram-lhe pelas faces enquanto algumas memórias passavam, como um filme, na sua mente. 

Foram o resto do caminho mudos, tentando lidar com a perda , cada um à sua maneira. 

Quando chegaram a casa, ele foi para o seu quarto deitar-se, rezando para adormecer e acordar com o seu pai ao seu lado, a sorrir como acontecia sempre que ele chegava tarde do trabalho e ia, pé ante pé, ao seu quarto percebendo quando fingia que dormia. 

Estava emocionalmente esgotado e acabou por adormecer. 

Acordou com a mãe a fazer-lhe festinhas no cabelo. Abriu os olhos devagar, sentindo a sua cabeça pesada e com uma sensação estranha, como se não fosse ele mesmo. Quando abriu os olhos, deu um pulo para trás, batendo com a cabeça na parede. 

  • Pai!? 

A mãe olhou-o, triste e compreensiva tentando, claramente, ajudá-lo o melhor que sabia e que conseguia. 

  • Não filho, sou só eu. 

  • Não mãe, o pai está atrás de ti. 

Gabriel apontava com o dedo a tremer sabendo que só podia estar a ver o fantasma dele. 

  • Meu amor. Acho que talvez tenhamos de pedir a um médico para te ajudar com o que aconteceu. O pai morreu, lembras-te querido? 

Ela falava de forma bastante meiga e paciente, no entanto, lá estava ele ao lado dela, a sorrir para ambos. Gabriel via o seu pai nitidamente como se lhe pudesse tocar embora soubesse que isso não fosse possível. Ele tinha visto o corpo dele no caixão vendo-o a ser engolido pela terra. 

Nisto o pai olhou para ele e sorriu, desaparecendo. 

Ele estava confuso com o que se estava a passar, contudo, se isso significava que conseguiria ver o seu pai não queria perceber. 

A mãe observava-o claramente preocupada com seu estado mental, por isso, tentou acalmá-la:

  • Eu sei mãe, desculpa. Acho que estou a precisar de descansar um bocadinho. 

  • Está bem meu querido, vai lá descansar. Até amanhã. 

  • Até amanhã mãe. 

Deitou-se agarrado ao corpo esperando que o cansaço o levasse de novo. Enquanto dormia, não sentia a dor da perda. 

  • O meu pai não… o meu pai não… 

Foi com este pensamento que se entregou novamente a um sono sem sonhos. 

A meio da noite, algo o fez despertar. Sentou-se na cama a sentir o ar à sua volta diferente, quente, vivo, mágico. 

Levantou-se e, à porta do quarto, o seu pai olhava-o da mesma forma, com o mesmo brilho e o mesmo orgulho que sempre tinha feito. 

  • Pai! 

  • Filho! 

  • Estou louco? 

  • Não filho, não estás louco. 

  • O que se passa? 

  • Tu tens um dom meu filho

  • Um dom? Não estou a perceber… 

  • Sim querido, consegues comunicar com os mortos é por isso que estou aqui a falar contigo. Eu já não estou vivo filhote… 

  • Isso quer dizer que te vou puder ver todos os dias? 

  • Infelizmente não meu amor… 

A dor aumentava enquanto as lágrimas caiam e os joelhos perdiam força atirando-o para o chão enquanto ouvia o que o seu pai lhe dizia. De que lhe servia comunicar com os mortos se não podia continuar a continuar a comunicar com o seu pai?

  • Não quero dom nenhum se não te posso ver todos os dias. Não quero! Dói muito...

  • Levanta-te meu querido filho. 

  • Não consigo. Sem ti, não consigo. 

  • Claro que consegues. Eu tenho muito orgulho em ti meu amor. Mas o meu caminho na Terra terminou, era o que tinha de ser. Não te sintas revoltado nem zangado, não é assim que quero que vivas. 

  • A minha alma está partida pai, a dor é demasiado para mim. 

  • Eu sei que ainda és muito novo para perceber o poder que te corre nas veias, no entanto, vai-te ajudar a sarar. 

  • Não sei… 

  • Lamento muito que não tenha conseguido despedir-me de ti querido. 

  • Eu lamento não ter estado no hospital contigo. 

  • Ainda bem que não tiveste. Não conseguiria descansar em paz sabendo que a última imagem que terias minha seria eu em sofrimento numa cama de hospital. Quero que me lembres com um sorriso e não com essas lágrimas que te escorrem pelas faces. 

Gabriel levantou-se e limpou a cara com as costas das mãos olhando-o nos olhos sentindo o amor a inundá-lo.

  • Prometo dar o meu melhor. 

  • Eu sei que sim meu amor. Sempre foste muito corajoso. Sempre que o sol se pôr, olha para o céu. Eu vou ser a estrela mais brilhante e estarei a ver-te e a ouvir-te. Não ignores o teu dom e ajuda outros que estejam a sofrer o mesmo que tu a encontrarem a paz. Eu estarei sempre contigo, nunca te esqueças que és parte de mim meu filho e eu tenho tanto, mas tanto orgulho no menino doce que és… 

  • Obrigado pai. Eu tenho muito orgulho em ser teu filho.

  • A noite vai ser a tua nova melhor amiga. Nada temas. O teu dom ganhará força depois do pôr do sol, Gabriel. Tens de aprender como o usar. 

  • Vou tentar, prometo. 

Ficou a ver o pai aproximar-se e dar-lhe um beijo no centro da testa. Era uma sensação reconfortante, inexplicável. Não sentia o beijo, todavia sentia o carinho e o calor na sua pele. 

  • Vais ter de ir já embora? 

  • Não meu querido, mas apenas posso ficar até o sol nascer. 

Ele e o seu pai ficaram a noite toda a relembrar os momentos que mais os marcaram.

Riam-se com gosto quando a mãe dele entrou no quarto. 

  • Estás bem Gabriel? 

  • Entra mãe, estou a falar com o pai. 

  • Gabriel… 

A mãe mostrava-se transtornada achando que ele estava traumatizado e deprimido. 

  • Diz à tua mãe que a primeira vez que a vi dei-lhe um pacote de açúcar que trazia uma mensagem na parte de trás que dizia: sê o meu sol

Gabriel reproduziu o que o seu pai lhe dizia letra por letra deixando a sua mãe de mãos na boca a tentar abafar o choro. 

  • Como é que sabes isso? 

  • O pai disse-me. Ele está aqui, sentado ao meu lado. 

  • É verdade, Paulo? Estás aqui? 

Paulo levantou-se e passou a mão na cara dela fazendo-a estremecer com a sensação. 

  • És mesmo tu! 

Gabriel contou tudo à sua mãe, não deixando nenhum pormenor de fora. 

  • De onde vem esse dom? 

  • Não sei. Talvez tenha sido a vida a dar-me este poder para trazer paz à vida daqueles que, tal como eu estava, andam perdidos e submersos no sofrimento da perda. 

O tempo passava sem que eles dessem por isso já que estavam felizes por terem Paulo ali, mesmo que em espírito. Porém, a noite terminava e ele tinha de partir

  • Tenho de ir meus amores. 

  • Ainda não… não estou pronto. A mãe também não está pronta… 

Ela olhava para ele com os arregalados percebendo que estava na hora. Fechou os olhos e suspirou. Quando os voltou a abrir, as lágrimas refletiam a luz de um novo dia que chegava depressa e que penetrava a escuridão do quarto. 

  • Estamos prontos meu amor. Quero que saibas que és e sempre serás o amor da minha vida. 

  • Gabriel, diz à mãe que se ela encontrar alguém que a faça feliz que não desperdice a oportunidade. Eu abençoarei tudo o que ela decidir. Quem ela escolher.

Ele levantou-se e disse à mãe o que o pai lhe pedia para repetir. 

  • Obrigada meu amor. Amo-te. 

  • Eu também te amo. 

Paulo chorava também enquanto dava um último beijo nos lábios da sua mulher. Ela tocou nos lábios, sorrindo e segurando na aliança que tinha no dedo. 

  • Gabriel, quero que saibas que te amo imenso, meu rico filho. Estarei à tua espera e quando chegar a tua hora virei-te buscar. 

  • Prometes pai? 

  • Prometo sim. Toma conta da mãe por mim e diz-lhe que a amo. Ela precisa muito de ti. 

  • Eu vou cuidar dela. Adeus pai, obrigado por me dares a oportunidade de me despedir de ti

  • Estarei sempre contigo, isto não é um adeus, é um até já. 

O seu pai desapareceu na noite deixando o quarto vazio. A dor ainda lá estava, forte, no entanto, mais suportável. Nesse momento a mãe abraçou-o, com os olhos iluminados pela luz da alvorada que entrava pela janela, inchados e vermelhos. 

  • Estás bem filho? 

  • Sim mãe. Estou bem. Nós vamos ficar bem. 

  • Pois vamos filho, pois vamos… 

Retomou o abraço, agarrando-a pela cintura e fechando os olhos sentindo-se, devagar, a sarar. 

Quando abriu os olhos, a sua avó materna olhava para ele com um sorriso de orelha a orelha desvanecendo até desaparecer. 

O sol brilhava e entrava no quarto apagando completamente a escuridão dando cor e vida ao espaço e, nesse preciso momento, Gabriel percebeu que sempre que usasse o seu dom com amor, o seu pai estaria sempre ao seu lado.


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