Uma grande mudança

Filipe é uma criança de 6 anos como qualquer outra. Vive em Lisboa num apartamento com os seus pais e o chiquinho, o gato preto. Gosta de jogar computador, passear com os seus pais e ir ao parque. Ama comer gomas e a sua comida preferida é a pizza de queijo. E, tal como a grande maioria das crianças, detesta ir à escola. 

– Bom dia mãe! Bom dia pai! 

– Bom dia filhote! – A mãe deu-lhe um beijo na testa e continuou a preparar o pequeno almoço. 

Beatriz é enfermeira, mãe, esposa, mulher, voluntária numa associação de apoio às vítimas de violência doméstica, ativista dos direitos da mulher e apaixonada por culinária. 

Aos olhos de Filipe, era a Mulher Maravilha. Poderosa, determinada, inteligente e protetora. Para ele, era a mulher da sua vida. 

– Olá Filipe, dormiste bem? – o pai passou a mão pelo seu cabelo deixando-o meio despenteado. 

– Sim pai, dormi muito bem. 

Raúl é engenheiro informático, pai, marido e adora bricolage. É especialista em inventar estórias de embalar e o que mais gosta de fazer nos tempos livres é provar os deliciosos pratos que a sua esposa confecciona. O seu prato favorito é arroz de pato à Beatriz e o que mais ama, acima de tudo, é brincar com o seu filho. 

Para Filipe, o pai é o Super Homem e tinha a certeza que nada nem ninguém conseguiria fazer-lhe mal pois o pai iria sempre protegê-lo. 

– Vá lá filhote, come os cereais depressa que estamos a ficar atrasados. Tenho de chegar cedo ao hospital. Eu e o pai vamos só comer uma coisa rápida para irmos embora. 

– Está bem mãe. 

Filipe comeu os cereais rápidos e subiu as escadas a correr para lavar os dentes. 

– Vamos Filipe! Eu e o pai já estamos despachados! – a mãe falava apressadamente com a pressa a tomar o controlo. 

Foi a correr ao quarto que ficava perto da casa de banho, pegou na mochila e desceu as escadas quase a voar. 

Saíram de casa, o pai trancou a porta de casa e entraram no pequeno carro de 4 portas azul que ele adorava e foram embora. 

A distância até à escola era muito curta pelo que chegaram rapidamente. A mãe saiu do carro já que o pai é que vinha a conduzir e ajudou-o a sair. 

– Tem um bom dia de aulas filhote! – o pai sorria mostrando um perfeito sorriso branco que Filipe adorava ver. 

– Porta-te bem! O pai logo vem-te buscar está bem? A mãe deu-lhe um rápido beijo entrando novamente no veículo 

– Não te preocupes mãe. Até logo amo-vos muito. 

– Nós também filhote-disseram os pais em uníssono. 

Filipe entrou na escola excitado por ser sexta-feira e por poder passar os próximos 2 dias a brincar com os pais. A mãe tinha folga no fim de semana e dissera-lhe que iam passear à praia. Estava tão contente que o dia parecia não acabar. 

As aulas foram o normal, teve uma ficha de língua portuguesa que lhe deu algum trabalho mas a professora ajudou-o a compreender e a ler algumas palavras difíceis. Fez duas fichas de matemática e esteve a falar da mãe natureza a estudo do meio. Para ele, matemática era a sua disciplina preferida. Adorava contas e era sempre o primeiro a acabar e um dos poucos a ter sempre tudo certo. 

Quando acabou a última aula, Filipe correu para o portão da escola e entrou para o carro dando um enorme abraço ao pai que já o esperava. 

– Como correram as aulas? 

– Correram bem! Pensava que nunca mais acabavam. Queria ir para casa brincar contigo! A professora não mandou trabalhos, por isso, amanhã podemos ir cedo à praia com a mãe. 

– Sim filho. Vamos à praia de manhã mas não podemos ir cedo. A mãe precisa de descansar. Mas podes ficar tranquilo que vamos na mesma à praia, está bem? 

– Sim pai! - Filipe sorria de pura felicidade. Ele adorava passear com os pais. Mas o que o deixava ainda mais feliz era não ter trabalhos de casa para lhe ocupar o dia. 

Assim que chegaram a casa, foi logo a correr para o quarto buscar os power rangers para brincar com o pai. 

– Anda pai, vamos brincar! – o pai estava a olhar para a televisão com um ar assustado e tenso. 

– Vou já filho… – ele falava sem tirar os olhos da televisão. 

– Que estás a ver? – Filipe não percebia o que diziam. Para ele as notícias eram chatas. 

– Estou a ver uma notícia de um vírus que apareceu na China. Chamam-lhe Covid-19 e parece estar a deixar as pessoas muito doentes. Os idosos estão todos a falecer. É assustador. Só espero que não chegue ao nosso país. 

– Não te preocupes pai! A China é muito longe

– Tens razão filhote, chega de notícias tristes – o pai desligou o aparelho e sentou-se no chão ao lado a brincar. 

Sem dar por isso, já era noite e o pai teve de deixar a brincadeira para ir fazer o jantar. Tinham estado a brincar às lutas. O pai era o Power Ranger verde e ele o vermelho. Tinham morto o mau muitas vezes mas ele voltava sempre. 

– A mãe vem jantar? – Inquiriu a criança. 

– Sim, vem. Vou fazer pizza que te parece?

– Boa! – Filipe deu pulos de alegria. Era o seu prato favorito e os pais não o deixavam comer muitas vezes. Diziam que não era saudável e que lhe fazia mal à barriga. Para ele aquilo era uma parvoíce. Como é que uma coisa tão boa podia fazer mal? 

Foi para o lado do pai ajudar com o jantar. 

Assim que terminaram de preparar a refeição e a meteram no forno, ouviram a porta fechar. A mãe tinha chegado. 

– Olá! Está cá alguém? Será que o meu filho ficou na escola? Não me veio buscar à porta hoje. 

– Mãe! Estou aqui! Estava a ajudar o pai com o jantar. Vamos papar pizza mãe! – saltou para os braços da mãe que o pegou ao colo 

– Estás a ficar pesado! – a mãe deu-lhe um beijo e tirou o casaco. 

Nisto, o pai chegou e deu um beijo à sua esposa. 

– Como correu o teu dia querida? - quis ele saber

– Correu bem mas foi cansativo. Parece que foi detectado um vírus estranho na China e os meus colegas temem que venha para cá. Portugal não está preparado para uma coisa destas. Aliás, os hospitais não estão preparados para enfrentar algo assim. 

Filipe tranquilizou a mãe:

– Não te preocupes mãe. A China fica muito longe. 

– Tens razão, meu querido. Obrigada. 

A mãe deu um beijo na face dele e foi tomar banho. 

Finalmente era Sábado. Era dia de passeio. Filipe foi o primeiro a acordar. Saiu disparado da cama e foi ao quarto dos pais. 

– Bom dia mãe! Bom dia pai! Está na hora de acordar! Vamos passear hoje! Podemos comer gelado? 

Ainda meio a dormir, o pai respondeu entre bocejos:

– Claro que podemos filho. Vens ajudar o pai a fazer o pequeno almoço? Vamos deixar a mãe descansar mais um bocadinho. Quando tivermos tudo pronto vimos acordá-la. Pode ser? 

– Pode ser pai. Filipe não estava lá muito convencido. Queria ir para a praia, passear com os pais e comer gelados e só queria ir embora. 

Filipe estava a ajudar o pai quando a mãe apareceu vestida cheia de pressa. 

– Raúl, Filipe, vão ter de ir à praia sem mim. Tenho de ir para o hospital. 

– Não vás mamã! – Filipe agarrava-se com as lágrimas nos olhos. 

Ao ver o estado do filho, a mãe pôs-se de joelhos, deu-lhe um abraço apertado e disse:

– A mãe promete ser rápida e vai ter com vocês à praia pode ser? 

– Prometes mãe? 

– Prometo filho. Olha, importas-te de ir à cozinha buscar uma maçã para mim por favor? 

– Claro que vou! 

Quando chegou à porta da cozinha ouviu a mãe dizer ao pai:

– Parece que o Covid já chegou a Portugal. Deixa-me roupa e desinfectante à porta por favor. Não quero que vocês apanhem esta coisa. 

– Não te preocupes querida. Tem cuidado por favor. - Disse o pai enquanto dava um beijo na face dela. 

– Não te preocupes. Vai passear com ele. A ver se ele se distrai e não percebe nada. 

Filipe apareceu e entregou a maçã à mãe. Deu um beijo à mãe e ficou a vê-la desaparecer pela estrada no seu carro. 

– Bom, vamos comer para irmos à praia? – Raúl tentava parecer animado. 

– Não quero ir sem a mãe. 

– Ó filho. Não fiques triste. A mãe não te prometeu que ia lá ter? 

– Sim mas… 

– Ela já te quebrou alguma promessa? 

– Não. 

– Então pronto. Vamos embora? 

De facto, sempre que a mãe prometia trazer um brinquedo ela trazia. Sempre que prometia fazer pizza ela cumpria. 

– Sim papá, vamos! - Ficara novamente animado. 

Arrumaram a cozinha e foram para a praia. 

O dia passou rápido. Estiveram a fazer castelos na areia e comeram 3 gelados! Estavam a acabar de fazer uma tartaruga quando a mãe apareceu a sorrir de felicidade. 

– Mamã! Vieste! - Filipe correu para os braços da sua mãe que o elevou no ar

– Claro que vim! Eu prometi que vinha, não prometi? 

– Sim! 

Beatriz ajudou-os a terminar a construção e juntos, decidiram ir comer fora

– Podemos comer pizza? 

– Podemos. – disse a mãe 

– Tu e a pizza. – disse o pai a rir. 

– É bom papá! – disse a criança a rir também. 

O jantar foi ótimo. Comeram tanta pizza que a pobre criança pensava que se caísse rebolaria até ao fim do mundo. 

Quando chegaram a casa, os pais escolheram um filme para terminar o serão. 

Filipe estava tão cansado que acabou por adormecer mesmo antes de o filme começar. 

Sentiu alguém o levar para a cama mas estava demasiado entorpecido pelo sono. 

No dia seguinte, completamente descansado, saiu da cama e foi ao quarto dos pais. Estava vazio. 

Desceu as escadas e foi à cozinha. O pai estava sentado a beber o seu café como fazia todas as manhãs. Porém, naquela manhã em particular ele parecia diferente, estava muito pensativo. 

– Bom dia papá! A mãe? – perguntou-lhe enquanto se sentava na cadeira em frente. 

– Temos de falar filhote. Anda sentar-te no colo do pai. 

Filipe obedeceu. 

– A mãe vai ficar uns tempos fora de casa. 

De olhos muito arregalados, o pequeno perguntou já a chorar :

– Porquê papá? Eu não quero ficar sem a mamã. 

– Tem calma filho. Já tens 6 anos, és um menino crescido não és? 

Ainda a chorar, limpou as lágrimas e respondeu :

– Sou. 

– Lembras-te do papá falar daquele vírus que estava na China? 

– Sim. 

– Esse vírus é muito mau. Deixa as pessoas doentes e a mãe vai ter de as salvar. Como o vírus é perigoso, a mãe e o pai acharam que seria melhor a mãe dormir no quarto dela em casa dos avós. 

Filipe não percebia nada daquilo, pelo que se limitou a acenar afirmativamente. 

– Mas vou poder ver a mãe, não vou? 

– Claro que vais! Só não vais poder dar beijinhos nem tocar nela. 

As lágrimas que a criança tentara dissipar voltaram mais forte do que nunca. Raúl abraçou-o e chorou também. 

Estiveram assim o que pareceu ser uma eternidade. Mais calmo, Filipe pediu para ir ver os desenhos animados. 


– Vai lá filho. O pai vai arrumar a cozinha. Ajudas-me? 

– Claro pai. Antes de ir ver os bonecos vou-te ajudar a arrumar a cozinha. 

Quando acabaram, Raúl foi atender um telefonema deixando o filho a ver os desenhos animados. 

– Olha filho, o pai vai começar a trabalhar em casa. Vou estar o dia todo contigo. Vais ter aulas em casa também. Não é bom? 

– Sim pai. Mas como é que vou ver a professora? Como é que vou aprender as letras? 

– Pelo computador. Não te preocupes, o pai trata de tudo. 

Filipe sentiu-se protegido e menos ansioso. 

Os dias foram passando e as saudades da mãe que Filipe sentia iam aumentando. Falava com ela todos os dias pelo telefone e via-a apenas no ecrã do telemóvel do pai. Passava horas contando como tinha corrido a escola pelo computador, o que ajudara o pai a fazer e quanto a amava. A mãe ficara muito feliz e chorava dizendo ter muitas saudades dele. Filipe apenas se queixava que o pai não brincava com ele depois de acabar as aulas no computador e Beatriz explicava que o pai tinha que trabalhar e que ele acabava as aulas cedo, pelo que não podia brincar com ele. 

Contudo, quando Raúl fechava o computador, ia ter com ele e, juntos, faziam uns vídeos muito giros no telemóvel numa aplicação chamada TikTok. Assim que o vídeo estava pronto, enviavam logo para a mãe. 

Ela mandava bonecos a rir e muitos corações. 

Filipe já conseguia ler muita coisa e já escrevia razoavelmente bem segundo a professora pelo que pedia sempre ao pai para ser ele a responder às mensagens da mãe. 

– Vou dizer à mãe que escolhi o filtro do macaco para a animar. 

– Já sabes escrever isso? 

– Claro pai! Não ouviste a minha professora? Já sei escrever bem. Mas preciso que me ajudes nalgumas palavras. 

Raúl ria de orgulho. O seu filho estava a ficar um homenzinho. Ainda ontem pegava nele, um recém nascido com 2 quilos e duzentos, frágil, Puro. Hoje já sabia ler e escrever, mesmo que com dificuldades.

Apesar de longe, Beatriz estava sempre perto, fazia videochamadas 2 vezes ao dia, o que atenuava as saudades de ambos. 

Um dia, Filipe viu um vídeo no Tiktok que o inspirou:

– Vou fazer isto! 

Eufórico, foi chamar o pai. 

– Papá, papá! Olha este vídeo! Podemos fazer isto e assim podemos abraçar a mamã! 

Raúl e Filipe não perderam tempo e meteram mãos à obra. Arranjaram plásticos que tinham em casa de móveis que tinham comprado, foram à despensa buscar a fita cola e fizeram uma enorme parede de plástico com braços junto à porta de entrada. 

Quando terminaram, Filipe ligou à mãe:

– Mamã! Eu e o pai temos uma surpresa para ti. Podes vir cá logo à noite? 

– Filho, a mãe não pode por causa do vírus. É para vosso bem.

– Não te preocupes mãe. Não te vamos mesmo tocar. 

– Não sei o que vocês andaram a aprontar mas eu vou aí. 

Filipe passara o tempo todo até a mãe chegar sempre inquieto, cheio de ansiedade. Mal podia esperar para a abraçar. 

Finalmente ouviu a campainha. 

– Abre! – gritou o pai! 

Filipe pôs-se em pé num banco e colocou os braços nos buracos.

Beatriz entrou em casa, de máscara, óculos e luvas. Ao início Filipe ficou apreensivo sobre aquela pessoa. Com a máscara a cobrir a cara, ficava difícil perceber quem era. Emocionada mas de coração cheio, Beatriz falou:

– É a melhor surpresa que já me fizeram!

Avançou para junto de Filipe que tinha agora a certeza de ser a sua mãe e abraçaram-se. 

Ambos choravam. Com as lágrimas a escorrer como cascatas pelos olhos e os soluços que lhes saiam pelos peitos. 

Raúl não aguentara a emoção e chorava também. 

– Vocês são os homens da minha vida. – Beatriz falava entre soluços com a voz carregada de emoção. 

– Nós gostamos muito de ti mamã. 

Depois de muito tempo, Filipe cedeu o lugar ao pai para ele poder abraçar a mãe também e matar saudades. 

Filipe observava os pais, orgulhoso por ter conseguido fazer o mesmo que fizeram no Tiktok. 

Quando o pai largou a mãe, ela despediu-se dos dois com uma certeza inabalável :

– O amor que sinto por vocês é muito maior que toda esta pandemia. O covid não nos vai separar e em breve venho para casa. Teremos de ter alguns cuidados e mudar algumas coisas na nossa rotina mas estaremos juntos. 

Feliz, Filipe estava a pensar que não se importava de deixar de brincar com os Power Rangers, de deixar de ver os bonecos e até mesmo de comer pizza só para ter a sua mãe de volta.

Quando a mãe saiu, Raúl foi buscar uma tesoura para "derrubar" aquela nova parede de plástico. 

– Não pai! – gritou-lhe o filho – A mãe ainda pode precisar dela para nos abraçar. 

– Não filho, já não vai ser preciso e sabes porquê? Porque nós vamo-nos preparar para receber a mãe. 

Ainda que não muito convencido, Filipe concordou em desmontar tudo. 

Ajudou o pai a criar uma receção à entrada de casa. A partir de agora ninguém entrava em casa com os sapatos que usavam na rua e tinham de trocar de roupa. Depois, tinham de desinfectar as mãos e deixar a máscara no caixote do lixo junto à porta e borrifar com lixívia para matar o Covid. 

No trabalho, a mãe usava duas máscaras, luvas e um fato especial de proteção anti-covid. Assim, garantia a sua segurança e a segurança da sua família. 

Três dias depois, a mãe voltou para casa e, finalmente, puderam repetir o abraço sem plásticos. 

– Tinha muitas saudades tuas mãe. És a minha heroína. 

A chorar a mãe agarrou-se ao filho:

– E tu e o teu pai são os meus heróis. 

Raúl juntou-se a eles e deram um enorme abraço com o amor a incendiar os seus corações.


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